EU ESTOU AQUI
Esta exposição resulta de sucessivos encontros.
O primeiro encontro com Raija Malka foi em 2009, ano em que começou a viver em Lisboa. Em 2014 apresentámos a exposição “gymnasion” no CAM - Gulbenkian.
O segundo foi com Leyla Gêdiz, em 2021. A artista mudara-se em 2017 para Lisboa e, ao visitar o seu estúdio com um amigo comum - também ele acabado de mudar-se para a cidade - e ao contactar com as suas pinturas e assemblages de objectos, falei-lhe da obra de Raija Malka, porque em termos processuais ambas constroem uma espécie de instalações-cenografias que depois migram para a pintura. Encontraram-se depois as duas.
Por sua vez, mais ou menos por essa altura, aconteceu o encontro com a arquitecta Sandra Pires que, em finais de 2016, com a sua família multinacional, se tinha deslocado de Nova Iorque para Lisboa e, após obras no espaço do que foi uma antiga tanoaria, o Marvila Studios começa a funcionar como lugar de pós-produção de filmes e também de exposições.
A dimensão cenográfica do espaço com a sua escada em caracol e recantos arqueados surgiu como um palco apropriado para a entrada das obras de Raija Malka e Leyla Gêdiz. As suas biografias e as vivências conduziram ao reflectir sobre a deslocação e o trânsito entre países, a questão do lugar e da pertença - somos de onde nascemos ou de onde vivemos? - subjaz à exposição num tempo em que a cidade é cada vez mais um lugar escolhido por criadores estrangeiros para viverem.
Todas estas circunstancias e abordagens levaram ao conceito-título da exposição: Eu Estou Aqui.
A partir do seu título, a obra sonora É Aqui! (2008) de Luisa Cunha (Lisboa, 1949) impôs-se como um introito, uma boca de cena, ao colocar - com a sua própria voz, através da repetição da interjeição da palavra “é aqui”, num tom entre a surpresa e a felicidade do encontro - de um modo tão simples e eficaz, a questão topográfica e de reconhecimento.
Raija Malka tem trabalhado o registo cénico em paralelo com o registo pictórico e de algum modo os dois são indissociáveis. As suas pinturas-caixas são uma espécie de palcos portáteis, paisagens internas ou cenários arquitectónicos luminosos com um cromatismo saturado, simultaneamente artificial e físico, como visões captadas por uma sonda que entra e percorre um organismo espacial, olhe-se Resurrection. Nada tem de naturalista, o cromatismo remete mais para a pele e a maquilhagem do que para a natureza e as luzes e as sombras criam membranas-perspectivas que apetece atravessar ou simplesmente estar dentro, como uma cadeira vazia é um convite para nos sentarmos mas pode ser simplesmente um objecto para contemplar.
Nas suas pinturas as cores não são planos opacos e fechados, são antes ecrãs para projectar ou ficar por detrás - Prologue -, lugares para habitarmos, receptáculos abertos aos nossos estados mentais e vivenciais. As pinturas, não sendo abstractas, também não são propriamente figurativas ou realistas, criam antes um meta-espaço que convida a uma contemplação activa.
Tanto Raija Malka como Leyla Gêdiz criam primeiro uma espécie de maquetes-cenários para o que depois pintam nas telas, veja-se a mesa e candeeiro de Malka ou a obra Altar de Gêdiz.
Para além das maquetes-cenários, Gêdiz recorre também à fotografia e à foto-montagem como elementos-esboços processais para a pintura, como se torna claro em Dolls House: um duplo auto-retrato em que a artista está simultaneamente dentro da caixa-abrigo virada para nós e também de costas e distendida ao lado da caixa de papelão. O seu próprio corpo foi o objecto transportado e que acabou de chegar a uma casa ou a caixa é a casa-invólucro? A deslocação e as inevitáveis dificuldades mas também as potenciais quimeras de mudar de lugar, país, língua, ou de sair da caixa e o sonho - ou pesadelo - de habitar numa casa de bonecas, num filme a preto e branco. Mais um traço comum às duas pintoras, o não naturalismo do cromatismo, que no caso de Leyla Gêdiz é visível numa paleta cromática hiper-contida. O texto-poema de Styrofoam Dreaming (Resist), que escreve ao lado da pintura das velas dentro dos copos em frente a um armário do Ikea, Silent Call, não podia ser mais elucidatório das dificuldades e quimeras das mudanças.
Trabalhar com o que está à mão, o reciclar como acto criativo que vai muito além da eventual dimensão ecológica e eleva-se a uma dimensão quase espiritual tanto em Birthday Present como em Altar, o papelão igual ao da caixa da pintura. E lá está a cabeça do Buda ou a fita de um embrulho com as palavras “La Mer”, para o sublinhar.
Eu Estou Aqui é mais do que a afirmação,, é a designação de um sujeito em relação com um lugar, um sujeito activo e aberto ao que o rodeia, eventualmente perdido mas que procura as coordenadas para se situar, orientar e encontrar-se numa cartografia de que não está seguro mas que quer conhecer e percorrer, à qual quer pertencer e reconhecer: É Aqui!
Isabel Carlos
Lisboa, Março de 2024
Nota: Agradeço a Catarina Rosendo pela leitura atenta e revisão deste texto.